domingo, 11 de dezembro de 2011

Natal de Clarice

Em algum jornal de televisão vi uma moça dando rápida entrevista por conta da corrida às compras no natal. Ganhando 600 reais por mês, mesmo tendo comprado há pouco tempo uma TV bem moderna, ela estava de olho em um novo aparelho. Ela disse algo como: “vou comprar, está todo mundo comprando!”. Pois é, a sensibilidade pessoal vai-se herdando e assimilando do mundo. Em alguns casos, há atrito permanente entre o que nos chega assim, absorvido como o ar que se respira, e o sentimento de que há algo pessoal desencontrado com esse trajeto certeiro do que chega ligado no automático.
É que não dá para deixar de pensar, vendo essa situação, em Clarice Lispector. Ainda mais por esses dias: foi aniversário dela agora. Me fascinam muitos dos contos que escreveu . Mas tenho um pedaço de um deles - publicado em “A felicidade Clandestina”- que toca nessa sensibilidade estrangeira ao que vem pronto como modo comum e a ser incorporado como sentimento e desejo. O pequeno texto sai do conto “ Menino a Bico de Pena”.

“Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação; ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para seu auto-sacrifício. Ultimamente ele tem até treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco- pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura”.