segunda-feira, 14 de março de 2011

alteridade e literatura

Num dos cursos que fiz no doutorado em estudos de literatura, tive a oportunidade de apresentar em aula as  inspirações  em outras áreas de conhecimento que levaram  Wolfgang Iser  a discutir  suas  propostas em teoria da literatura. Tenho identificação com seus argumentos por tratarem da questão que mais me fascina,  alteridade e  arte.




A construção da subjetividade e a Teoria do ato da leitura de Wolfgang Iser



         No universo dos estudos de literatura, a compreensão do fenômeno literário como algo relacionado à contingência pressupõe a idéia de diferença, de construção parcial de mundo, de caráter provisório das identidades, de equilíbrio flutuante, de “heterarquias”.  Construções teóricas a-históricas acerca da noção de indivíduo, não levam em conta suas realizações, sua linguagem, suas obras, seus costumes, sua cultura.
         Desde os anos 60, as teorias da literatura passaram a ver como ingênua a analise literária fundamentada em princípios da hermenêutica oitocentista. Os pressupostos desta análise, inquestionados até então, apontavam para um modo de interpretação com pretensões de conhecimento da intenção do autor, da significação, da mensagem, assim como de verificação da harmonia entre figuras, tropos e camadas da obra.
        As obras da literatura moderna não mais “atendiam” a determinado procedimento de interpretação.  Ou os critérios não mais alcançavam as obras, ou as obras começaram a se tornar incompreensíveis diante dos procedimentos habituais de interpretação. Nessa situação, o questionamento antigo tornou-se datado historicamente, acarretando um impasse teórico, já que determinadas convenções orientadoras não atendiam à recepção da obra literária.
Para Wolfgang Iser (1996), à mudança na tradição provocada por novas experiências da modernidade somou-se o clima anti-autoritário da revolta estudantil de 1968. A visão de que o modelo hermenêutico clássico de interpretação não mais atendia a um contexto, mais uma série de insatisfações em âmbito social, levaram a um desmascaramento crítico-ideológico decisivo para os estudos de literatura.
        Para os jovens do “maio de 68”, o terceiro nunca seria excluído: tudo que existe propõe seu oposto; mas assim que esse oposto se define, nem este nem seu contrário continuam existindo: um terceiro surge que de imediato encontra seu oposto e assim por diante. Utilizando-se da figura do espiral, nessa época, Roland Barthes (1990:198) tratou da “cursividade do descontínuo”. Seria uma linguagem poética, simbolicamente oposta ao círculo, este último próximo ao teológico e ao religioso. A espiral, como “um círculo desviado para o infinito, é dialética”. Nela “(...) as coisas voltam, mas em outro nível: há retorno na diferença, não repetição na identidade”.  Com a espiral há a regulamentação da dialética do antigo e do novo, “nada é primeiro, no entanto tudo é novo”, não se precisa pensar, por exemplo, que tudo está dito “ou então,” que nada foi dito”.



A Consciência histórica e a construção da realidade

              Os estruturalismos, que foram idéias pregnantes na década de 60, posicionavam-se radicalmente contra o Humanismo oitocentista, contra instâncias caras àquela cultura da modernidade, como a de sujeito, de homem, de história, de autor, de significação. Mas, apesar da compreensão de que determinadas idéias não cabiam mais em outro contexto, não foram aprofundadas noções como de temporalidade e contingência.  Na Teoria do Efeito Estético, de Iser, a hermenêutica clássica não mais atingiria seus propósitos devido à impossibilidade de dialogar com os textos literários de um contexto histórico bastante diferenciado daquele em que a hermenêutica foi concebida. “Toda teoria literária tem relação direta com um tipo específico de literatura”, afirma Iser (1999), ou seja, seus pressupostos estão articulados com seu contexto cultural,oque não impede que a complexidade e a abertura desta perspectiva deixem de oferecer condições para o estudo da literatura do passado. Um teórico da recepção pode examinar nos textos de autores de diferentes épocas como que são articuladas as referências e  questões específicas desse contexto por determinado  autor, e assim reconstruindo esse outro  tempo e participando  de  situações até então  desconhecidas.
     Estuda-se literatura, diz Iser (1999), para entender como as coisas são o que são. Ao invés de procurar a verdade, a literatura busca estudar o lugar da emergência.  É o que leva Iser a dizer que não há diferença entre ficção e realidade, que é continuamente formatada e produzida.


Alguns pressupostos da teoria do Efeito Estético


     As idéias de Thomas Luckmann e Peter Berger a respeito da Construção Social da Realidade influenciaram significativamente a construção da teoria do Efeito Estético.  Questionando o caráter a-histórico do “sistema social” e da “natureza humana”, os dois autores trazem uma perspectiva radicalmente diferente das concepções teóricas vigentes ao assinalarem que o homem ao construir a realidade, se constrói a si próprio, em processo de transformação constante, em que natureza, sociedade, realidade objetiva e subjetiva, vão se opor e se integrar. Importa, portanto, o que é dado, o que aparece como empírico e não o caráter de causalidade. Desse modo, as instituições são vistas como concepções produzidas sempre a partir da relação entre sujeito e sociedade, onde os limites entre um e outro são bastante tênues.  (Berger, 1983: 77). 
           Para os estudos de literatura a consideração da contingência no processo interacional entre duas pessoas em situação face a face, e da noção de identidade como construída  a partir do tipo de relação estabelecida entre o eu e os outros, foi  imprescindível para a visão relacional   de compreensão de texto.
         Ronald Laing, H. Phillipson e A. R. Lee, nos anos 60, mostraram como  os  modelos  clássicos  no  âmbito da psicologia e da psicanálise, primando por  um ponto de vista egotista,   eram  insuficientes  para  a concepção de   identidade.   As teorias e estudos do indivíduo, isolando-o de seu contexto, garantem uma identidade constituída de um “eu” fechado e desvinculado do mundo dos outros.  Pela perspectiva desses teóricos, uma pessoa está sempre agindo sobre os outros e sofrendo a ação deles também.
       Nesse cenário da psicologia, há que se destacar o combate de Félix Guattari às Instituições, especialmente da escola, do exército, da psicanálise mesma, e de alguns saberes como o estruturalismo, que Guattari tinha como dotado de extenso poder e autoritarismo. Segundo o autor (1981: 133), a psicanálise, que esteve por algum tempo conectada ao “esquerdismo”, tendia a estar por toda parte, na escola, na família, na televisão, exercendo “discretamente” uma repressão.  Sobre o “lacanismo”, diz Guattari:


É maravilhoso conseguir sujeitar alguém a sua pessoa, mantê-la de pés e mãos atadas, financeiramente, afetivamente, sem nem dar ao trabalho de fazer algum esforço de sugestão, de interpretação ou de dominação aparente. O psicanalista hoje não diz mais uma palavra a seu paciente. Chegou-se a um tal sistema de canalização da libido, que basta o silêncio. Isto faz pensar naquelas formas ideais de pedagogia em que o mestre não precisava mais falar: bastava apenas um sinal de cabeça (op.cit: 134)


         O teórico de literatura Iser, recorre a outras áreas de saber, como a sociologia do conhecimento, a psicanálise e a psicologia, para compreensão dos mecanismos de subjetivação.  Por enfoques diferenciados dos modelos clássicos de construção da identidade, o teórico mostra que suas propostas estão em sintonia com questões que emergem decisivamente nesse contexto dos anos 60. A idéia de subjetividade, para o autor, compreendida a partir das interações complexas, que ele vê na relação entre texto e leitor, evidencia um distanciamento  de   herança  cultural  de cunho metafísico   a  privilegiar  identidades.
            As investigações de Berger e Luckmann, na sociologia do conhecimento, apontam, por exemplo, para a indagação: “como é possível que significados subjetivos se tornem facticidades objetivas?” ou “como é possível que a atividade humana produza um mundo de coisas?” 
Também na década de 60, Laing, Phillipson e Lee, trouxeram a idéia das relações interpessoais diáticas, elaborada a partir de resultados de seus trabalhos clínicos com casais. Os autores, a partir de uma área de conhecimento que chamam de “fenomenologia social”, mostram como a posição de uma pessoa é experimentada por outra, no face a face, afirmando que o método que aplicam pode ser estendido a qualquer outra díade. Para os autores, trata-se de distinguir entre pensar que a vida social é constituída por uma multiplicidade de egos ou se ter em conta que a experiência do eu só se enriquece na relação com o  você, ela, ele, nós, eles.


O eu e os outros
           
            Um dos pressupostos que serve de referência para esses autores, como eles mesmos mencionam em O si mesmo (self) e o outro, é o pensamento de Martin Buber que distingue a relação inter-humana das relações sociais. Estas não implicam relação existencial de pessoa a pessoa. Para Buber, perceber o outro é tomar dele um conhecimento íntimo, diferente da observação analítica que reduz e transforma o outro em simples objeto. Tal percepção significa também para Buber, "tornar o outro presente". Na relação não há supremacia de um sobre o outro. Na relação Eu-Tu o elemento constitutivo primordial é a palavra. O diálogo está assim no centro da relação. Palavra da proximidade pela proximidade, resposta que precede a questão, palavra de responsabilidade pelo outro, tornando possível o "para o outro", a força de oferta. Palavra também como aceno ao outro,  dizer sem ter  dito. Palavra entre; não palavra "sobre" ou palavra imperativa, extraindo-lhe a alteridade; palavra com o outro. Buber, no fim dos anos 30, pensa no “entre” como um lugar, como o suporte daquilo que se passa entre os homens, lugar existencial, além do subjetivo, aquém do objetivo, onde se encontram o Eu e o Tu, o autêntico terceiro.
            A dimensão da alteridade vista nessas abordagens, e localizada especialmente no espaço entre o “eu” e o “outro”, foi elaborada na primeira metade do século XX, como vimos com Buber, mas é a partir dos anos 60 que ela é esboçada  como  afastamento  de   ideais de  interioridade.  A conceituação da identidade, não mais como algo dado, natural, estático, cristalizado, fica evidente nessas teorias. Ao mesmo tempo, o dinamismo, a contingência e a capacidade de alteração em face às circunstâncias, apontam para sentido distinto da constatação estruturalista da “morte” do sujeito e do autor.
            A noção de realidade como construção social e de identidade como construída na interação com o outro dá destaque às proposições de Iser no contexto da literatura. Aquela interpretação interessada na descoberta de significados ocultos, a idéia de texto como testemunho do espírito de uma época, como reflexo de condições sociais ou como expressão das neuroses de seus autores, perde o sentido. A experimentação que o texto pode provocar com seu potencial de comunicação é imensurável, e não é algo que vem pronto. Isso faz com que muitos textos de épocas distantes tenham como ainda “falar” e faz com que a obra de arte deixe de ser vista como representação de valores socialmente dominantes (Iser, 1999, vl 2).


  O texto como jogo

             O prazer do texto, ou seja, a “absorção mais intensa do leitor no jogo do texto” leva Iser (1999) a dialogar com Roland Barthes.  Esse é um sistema de leitura caro a Barthes que foi tomado por Iser pela sua distinção, pelo o que significa em termos de capacidade de absorção do leitor no “jogo do texto”. Um sistema de leitura que convém ao “texto limite”, que é, para Iser, o texto moderno. Aqui, diz ele, o sujeito se põe no jogo, “pondo-se em jogo; desliza para o texto”.  Uma leitura, um jogo, uma relação, que requer um sujeito que se elimine como referência, para que transpasse o limiar, o outro.
            Para Barthes, diz Iser, ao abstrair-se de si mesmo, o leitor torna-se um leitor “aristocrático”, que não é o mesmo que um leitor elitista. O aristocrata é aquele que abandona seus costumes, familiaridades, evidências. O prazer dessa relação está no outro, ele surge a partir das condições do texto. Nesse caso, o prazer que é puramente do próprio sujeito, desaparece rapidamente numa interação do sujeito com o texto onde o prazer pode ser desdobrado em repetição infinita, pelo auto-esquecimento, pelo perder-se. Talvez alcance até uma eternidade, diz Iser, que na vida real não se tem como alcançar. O deslizar para a falta de fundamento, para a experiência da alteridade, é o que está em jogo nessa relação onde “o sujeito leitor coincide com o ‘sujeito do texto”.
             
REFERÊNCIAS Bibliográficas

Barthes, Roland. O Óbvio e o Obtuso, Rio de Janeiro, ed Nova Fronteira, 1990
Berger, Peter L. e Luckmann, Thomas. A Construção Social da Realidade, Petrópolis. Ed. Vozes,1978
Buber, Martin. Do diálogo e do Dialógico, São Paulo. Ed. Perspectiva, 1982.
Guattari, Félix .A Revolução Molecular, pulsações políticas do desejo. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1981
ISER, Wolfgand. O Ato da Leitura, vol 1 e 2. São paulo, Ed. 34, 1999
_________________ O Fictício e o Imaginário. EDUERJ, 1999
Olinto, Heidrun K.  Histórias de Literatura. As novas teorias alemãs. São Paulo, ed. Ática,1996.
________________ Apontamentos em sala de aula, no curso Teorias da literatura contemporâneas. PUC-RJ. Departamento de Letras. 2000.1